Olá, Bem Vindo ao Cenas, Cenários & Senões

Publico aqui textos de observação do cotidiano na forma de crônicas e contos.

sábado, 1 de novembro de 2008

Mexericos e Mexericas

Por esses dias aconteceu algo interessante. Escarafunchando pela Internet encontrei o contato de um ex-namorado de quando eu tinha uns dezessete anos.

Fiquei ali, olhando para o nome, à distância de um clic e, de repente eu me transportava para aquele tempo, lembrando com muita saudade de quem talvez eu nunca tenha esquecido, mas que desapareceu do cotidiano.

Como era um site comercial, não resisti, e com um simples movimento solicitei contato. Para minha surpresa, algumas horas depois não só o contato foi aceito, como veio seguido de uma simpática mensagem pessoal do moço, não mais tão moço, contando um pouco da vida atual, família, trabalho; alguma coisa que eu já sabia por conta dos mexericos dos amigos em comum que sempre insistem em dar noticias de ex-amores.

É, amor, tenho certeza que era amor, destes dos bons, completo, daqueles que não se esquece, adoece, adormece, até que o tempo em uma reviravolta, um sopro de vento, traz de volta uma pequena recordação, uma notícia, um encontro.

As mensagens seguiram rápidas, ficando logo claro que não era um daqueles casos em que não se tem mais assunto nem nada a ser dito, tudo confirmado por um amigo, que sem saber do ocorrido naqueles dias, trouxe a dimensão da curiosidade do outro: Sabe quem perguntou de você?

Por vezes, desde o primeiro encontro, o vento do tempo nos colocou frente a frente em momentos de vida muito diferentes. Eu diria que fora de época. É! Porque algumas coisas na vida e na natureza acontecem fora de época. Não é assim? Ou como se explica as refrescantes mexericas darem só no inverno?

domingo, 10 de agosto de 2008

Carta

Ele era um solitário, agora, porque seus gestos, roupas e postura denotavam a condição adquirida de solidão. O que só aguçava minha curiosidade, daquelas que corroem um pedacinho da razão, descambando para a travessura.

Não me cansava de observá-lo fantasiando ainda mais aquele que já era só fantasia. Morava em frente a nossa casa, saia somente nas segundas pela manhã, voltando na terça no mesmo horário, passava a noite fora. Ia sempre a pé, até onde podia se ver carregava uma sacola destas de loja de shopping, sempre a mesma, meio encardida.

Devia ter perto de cinqüenta anos, era alto, magro o rosto bem cuidado, cabelos curtos, roupas boas e arrumadas, era quase bonito, quase normal. No resto dos dias, meses e anos ficava em casa, não recebia ninguém, não abria as janelas, não acendia a luz, chegava ao portão para pegar a correspondência, sempre muita.

Eu o conhecia há quatro anos, desde o acidente, que me transformara de um observador travesso em um observador inerte, tudo o que eu conseguia ver era o quadro formado pela esquadria de madeira descascada. A cama ocupava agora uma estranha posição para que a janela fosse totalmente visível.

Eu sabia cada movimento e cada detalhe daquele espaço, mas ele era o meu desafio. De quem eram as cartas? Mulher? Homem? Porque tantas? Aonde ia às segundas? Provavelmente eu nunca saberia, já estava na versão mil quatrocentos e vinte e sete desde que o descobri. Tinha imaginado uma estória por dia. Agora minha criatividade carecia de dados, estava no limite do possível, quase decidindo a transformá-lo em uma árvore ou um pássaro que repetia trajetos.

Foi quando aconteceu um pequeno milagre, eu ainda esperava os milagres, já que só um transformaria minha condição de imobilidade, tentava entrever milagres diários para continuar acreditado na possibilidade de uma ocorrência concentrada e poderosa.

Bem, mas o fato se deu que uma das tais cartas, com o envelope lambuzado de cola, grudou na minha correspondência e lá estava camuflada na contracapa da revista de esportes que eu ainda insistia em assinar.

Doente de curiosidade, eu tentava encontrar em todas as curvas de caligrafia as pistas possíveis para aquela que seria, com certeza a versão definitiva da novelinha em cartaz.

O envelope era branco, na frente o endereçamento era para nossa rua, casa da frente, e o nome dele, comum, composto, terminado no neto das repetidas homenagens familiares. A letra era firme, um só selo, vinha de perto.

Guardei para o final a delícia de ver o remetente que inexplicavelmente era o mesmo nome com o neto e tudo, o endereço igual, a caligrafia trêmula, a caneta outra.

Por um instante desejei abrir a carta, mas se o fizesse ficaria remoendo esta culpa. Nada menos esclarecedor e mais estranho que aquilo foi então que resolvi, escrevi para casa em frente, devolvi a carta e pedi ajuda.

sábado, 12 de julho de 2008

Terceira Virtualidade

Terceira Virtualidade é o livro concluído da autora em busca de publicação , abaixo a nota indicativa do tema .

Sônia é a fictícia personagem desta história de muitas: a viuvez, a casa sem filhos, as mudanças no mundo e os novos valores sociais, diferentes daquilo que ela sempre acreditou ser o “certo” para a vida e ser verdade “para sempre”. Sônia enfrenta uma enorme angústia ao deparar com questões que não estava preparada para enfrentar naquela fase da vida.
Muitas mulheres se vêem na personagem, sozinhas ou solitárias, dedicadas a projetos familiares “perfeitos” que não existem mais. Encaram esta realidade e podem escolher, ou não, o tempo como aliado, o tempo que consola, acalenta e desafia nossa existência.
Encantada com este misterioso tempo, tomo emprestados os versos de Eclesiastes na abertura de cada capítulo, versos que sabiamente dizem: “Um tempo para plantar, um tempo para colher” .

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Noite da Saudade - Selecionado pelo Estado de São Paulo para publicação em 19/07/2008

“Não quero esse negócio de você longe de mim”, a frase escrita em uma faixa de morim barato tremulava na frente do número 555 da Rua das Rosas, em uma ladeira fétida do encardido subúrbio da zona portuária.
A faixa surgida na madrugada, certamente era para um dos vinte habitantes da casa de cômodos 555, como era conhecido o maior cortiço da rua. Por lá, quem mandava era Maria do Carmo ou “Du’Carmo”; tinha uns sessenta anos, mancava um pouco pelo peso excessivo, pintava cabelos e unhas de vermelho e sempre estava aos berros. Foi assim, com um berro e um palavrão, que recebeu a faixa às seis da manhã, hora em que abria as portas do 555 e varia para a ladeira as lamúrias da noite.
Pouco a pouco das entranhas do 555, as janelas se arregaçavam e os moradores escorregavam para o começo do dia, a todos Du’Carmo berrou “Você viu?”. Formou-se uma rodinha e muito antes do meio dia já havia três candidatos a óbvios destinatários da mensagem.
Zélu, o vesgo, dizia que era coisa de uma prima, ansiosa para que ele voltasse à Minas e a salvasse da solterice. Era a versão divulgada da história, mas ele sabia ser uma mensagem cifrada do agiota que não parava de persegui-lo, a quem a cada minuto ele devia mais dinheiro. O prazo estava acabando; o sujeito ameaçava aprisioná-lo para trabalho escravo, agora sabe onde ele mora, tinha que dar o fora.
Outra receptora assumida da faixa foi Sueli, a mais nova moradora do 555, tem uns quarenta e poucos anos, bonitona, se equilibra em saltos desafiando a ladeira. Chegou quieta, pagou por quinze dias, não contou muito da vida, disse ter chegado a pouco na cidade. Segundo ela mesma, é recepcionista em uma firma do centro. Contou para todos que ao chegar aqui reencontrou um antigo namorado e “-Tudo fora mágico!”. Porém, ele se despediu, dizendo que ficaria fora por um mês e na volta a procuraria. Ela tinha certeza, a faixa era uma surpresa dele, uma declaração. E, dizendo isto, saiu pela ladeira toda empertigada com o salto mais alto ainda.
Serginho, como era conhecido no 555, subia e descia as escadas dizendo a todos “–Claro! A faixa era para ele!”. Morava no cortiço há dois anos, bom pagador, Du’Carmo tratava-o a pão-de-ló. É um tipo peculiar, magro, alto, com o rosto marcado pela acne andava pela casa com roupão de seda e pantufas, aconselhando todos. Não trabalha, corria à boca pequena, o boato que era o filho bastardo do bicheiro do bairro que o mantinha com uma mesada, depois que a mãe sumira neste mundo. Homossexual assumido passava o dia, como ele dizia: Ao serviço das mazelas da humanidade. A noite se deleitava nas boates do porto, sofrendo por algum marinheiro desaparecido, jurava que a faixa era fruto do mais recente beijo de despedida que dera.
Passado o burburinho, Du’Carmo desceu a ladeira em direção ao mercado de peixe e de lá trouxe a notícia, muitas faixas iguais estavam pela parte baixa onde ficavam as boates; uma destas casas fazia uma promoção para divulgar o evento que aconteceria ali a “A Noite da Saudade”.

Professor de Matemática - Publicado na Antologia da Livraria Asabeça 2006

Professor de Matemática

Conhecê-lo a qualquer tempo seria marcante, na adolescência foi incrível. Caminhava esquecido da pressa; uma perna mais arrastada que a outra, sempre em calças de brim escuro e camisas de manga curta xadrez.

Carregava uma pasta pesada que o fazia tombar mais para um dos lados, cabelos brancos anunciavam a aposentadoria há muito conquistada, o rosto marcado por uma varíola da juventude parecia sempre calcular algo em pensamento. O cenho franzido e o ar preocupado que só relaxavam ao dar solicitadas explicações. Na bagagem, equações, números, fórmulas; misteriosos triângulos com sábias soluções para tudo e todos.

O nome como uma acusação aos relapsos era Pacca com dois cês. Ignorava quem o chamava o sem o título professor ou mestre e respondia escrachado: “-Pacca não, que eu não tenho a tua idade!”

E não tinha mesmo! Podia ele ser o nosso avô, mas na determinação de permanecer ativo após a aposentadoria continuava ali, lecionando no colégio que ficava a apenas duas quadras da sua casa.

Vinha religiosamente todas as manhãs para da sétima série ao fim do colegial fazer-nos entender álgebra e trigonometria – missão quase impossível! Só ao chegar ao vestibular é que reconhecíamos como bem sucedida e aí, invariavelmente, era ele o paraninfo da formatura, homenageado pela turma rebelde que quase se arrependia das tantas que tinha aprontado e das maldições levantadas contra a disciplina e seu mentor.

Eu preferia que ele nem soubesse da minha existência, mas não foi o caso. Vítima dos números e dos desafios das contas, minhas notas foram desastrosas. Desconsolada com o resultado e descrente da possibilidade de domar o dragão matemático, desatei a chorar. Coisas de menina! Ele mesmo fez questão de acompanhar o assunto e se dedicar a dar-me explicações adicionais além das solicitadas pela turma. Resultado, na próxima prova, nota recuperada e um bilhete do mestre que dizia: “- Menininha obstinada! Vai além de Paracambi!”

Já lá se vão vinte anos desta história, o mestre aposentado com certeza já não leciona mais espero esteja, obstinadamente entre nós.

Não faz muito tempo, passei na estrada por uma placa que indicava Paracambi e pensei com um sorriso: - Cheguei!