Olá, Bem Vindo ao Cenas, Cenários & Senões

Publico aqui textos de observação do cotidiano na forma de crônicas e contos.

domingo, 21 de novembro de 2010

OVO COM KETCHUP E SONHO

Batendo palmas, gritava: “dez reais! dez reais!”. Esparramado à sua frente um mosaico colorido e brilhante formado por bolsinhas e carteiras. Só naquele lado da calçada tinham outros dois colegas vendendo a mesma coisa, aquelas inutilidades que ninguém queria.

Ao longe, começou a ouvir um apito e depois os assobios, a tensão se espalhou no ar e a correria agitou o Largo da Carioca. Rapidamente puxou o cordão que transformou o pano preto em um saco de mercadorias, saiu correndo sumindo pela rua lateral. Era quase meio-dia e a terceira vez que o rapa passava naquela segunda-feira.

Um pouco à frente, ofegante, teve tempo de enfiar o boné e vestir a camiseta vermelha por cima da regata. Devagar, foi andando bem junto às lojas e parou numa lanchonete a fim de fazer hora para dar a volta no quarteirão e sair de novo no Largo.

A confusão se dissipara, os camelôs haviam desaparecido, mas ele podia ainda vê-los camuflados nos cantos, protegidos nas marquises e embaixo das árvores.

Estava suado e sentia-se exausto. Achou uma sombra, sentou-se na mureta de jardim, respirou fundo. A cabeça girava e doía. Tirou a caixa plástica da mochila e prendeu o saco preto atrás dos calcanhares. Abriu a marmita fria, equilibrando-a no topo dos joelhos dobrados junto ao corpo.

Eram tempos difíceis. Final de maio, não tinha vendido quase nada aquele mês, a mercadoria acumulava, as contas vencidas também. Para o Dia das Mães trouxera bolsas e vendera pouco, todos queriam algo mais barato. Agora, para o Dia dos Namorados trocara por carteiras, malditas carteiras, e todos queriam algo mais sofisticado, mais moderno. Desde quando namoradas haviam ficado mais importantes (ou sofisticadas) que mães?

Remexeu, com vagar e método, a comida: arroz pouco, feijão menos e uma titica de macarrão; tirou do bolso o ketchup que pegara numa mesa de bar da calçada, espalhando o molho por cima da comida, como a tentar escrever seu nome ou fazer um desenho estranho.

Tomado de angústia, percebia o mês passando rápido. O verão tinha sido ruim, chuva à beça. As pessoas andavam menos nas ruas, sempre apressadas, compravam menos ainda. Em casa, ainda mais grave, andava faltando quase tudo.

A esposa havia ficado mais exigente desde que arrumara um emprego como diarista na zona sul, seu olhar tinha mudado e, de repente, nada mais que ele fazia era suficiente. Agora, todo dia ela falava alto e, agressiva, reclamava que não merecia viver daquele jeito. Para piorar, os filhos pequenos pareciam assustados e refletiam a fase ruim que viam, chorando a cada discussão mais áspera dos pais. Viviam um inferno. O barraco tinha inundado três vezes só em fevereiro, tudo ainda cheirava a umidade, mofo e sujeira. Cada vez mais ele odiava chegar em casa. .

Misturou de novo a comida fria na marmita, empurrando com o dedo sujo para encher a colher. A boca estava seca, não havia nada para beber. Tinha uma fome que nunca saciava e um nó no estômago aumentando. A cabeça ardia. Como ia se virar? O dinheiro dava só para a passagem de volta e não tinha como vir trabalhar no dia seguinte.

Ao seu redor, os camelôs voltavam a se instalar. Alguém gritou para ele se mexer, mas continuava ali, paralisado, segurando a colher vazia.

O sol se escondeu aliviando o calor por um momento, tudo indicava que choveria mais tarde, não venderia nada, mais uma vez. Queria sair dali, mas não saiu.

Olhou, então, para o céu do Largo. Uma nuvem, que se formava parecendo um ovo, chamou a sua atenção. Imaginou que bem podia ter um ovo naquela sua droga de marmita.

Os agitos e a gritaria retornaram, os camelôs reiniciavam a correria, repondo mercadorias. Por todo lado burburinho e atropelos. Com um solavanco alguém derrubou sua marmita, esparramando o resto da comida pelo chão.

Ele pareceu nem notar. Permanecia ali, meio encolhido, com o olhar embaçado, o antigo nó na garganta e o semblante vazio. Mais uma vez fitou a nuvem e pressentiu a chuva que se formava. Lentamente levantou, enfiou o saco preto por trás de umas plantas da jardineira e foi caminhando, com mais fome na alma que no estômago, até sentar-se na entrada da Igreja onde viu anoitecer e clarear para começar um outro dia.