Olá, Bem Vindo ao Cenas, Cenários & Senões

Publico aqui textos de observação do cotidiano na forma de crônicas e contos.

domingo, 10 de agosto de 2008

Carta

Ele era um solitário, agora, porque seus gestos, roupas e postura denotavam a condição adquirida de solidão. O que só aguçava minha curiosidade, daquelas que corroem um pedacinho da razão, descambando para a travessura.

Não me cansava de observá-lo fantasiando ainda mais aquele que já era só fantasia. Morava em frente a nossa casa, saia somente nas segundas pela manhã, voltando na terça no mesmo horário, passava a noite fora. Ia sempre a pé, até onde podia se ver carregava uma sacola destas de loja de shopping, sempre a mesma, meio encardida.

Devia ter perto de cinqüenta anos, era alto, magro o rosto bem cuidado, cabelos curtos, roupas boas e arrumadas, era quase bonito, quase normal. No resto dos dias, meses e anos ficava em casa, não recebia ninguém, não abria as janelas, não acendia a luz, chegava ao portão para pegar a correspondência, sempre muita.

Eu o conhecia há quatro anos, desde o acidente, que me transformara de um observador travesso em um observador inerte, tudo o que eu conseguia ver era o quadro formado pela esquadria de madeira descascada. A cama ocupava agora uma estranha posição para que a janela fosse totalmente visível.

Eu sabia cada movimento e cada detalhe daquele espaço, mas ele era o meu desafio. De quem eram as cartas? Mulher? Homem? Porque tantas? Aonde ia às segundas? Provavelmente eu nunca saberia, já estava na versão mil quatrocentos e vinte e sete desde que o descobri. Tinha imaginado uma estória por dia. Agora minha criatividade carecia de dados, estava no limite do possível, quase decidindo a transformá-lo em uma árvore ou um pássaro que repetia trajetos.

Foi quando aconteceu um pequeno milagre, eu ainda esperava os milagres, já que só um transformaria minha condição de imobilidade, tentava entrever milagres diários para continuar acreditado na possibilidade de uma ocorrência concentrada e poderosa.

Bem, mas o fato se deu que uma das tais cartas, com o envelope lambuzado de cola, grudou na minha correspondência e lá estava camuflada na contracapa da revista de esportes que eu ainda insistia em assinar.

Doente de curiosidade, eu tentava encontrar em todas as curvas de caligrafia as pistas possíveis para aquela que seria, com certeza a versão definitiva da novelinha em cartaz.

O envelope era branco, na frente o endereçamento era para nossa rua, casa da frente, e o nome dele, comum, composto, terminado no neto das repetidas homenagens familiares. A letra era firme, um só selo, vinha de perto.

Guardei para o final a delícia de ver o remetente que inexplicavelmente era o mesmo nome com o neto e tudo, o endereço igual, a caligrafia trêmula, a caneta outra.

Por um instante desejei abrir a carta, mas se o fizesse ficaria remoendo esta culpa. Nada menos esclarecedor e mais estranho que aquilo foi então que resolvi, escrevi para casa em frente, devolvi a carta e pedi ajuda.